sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Ruy Belo :: Morte ao meio-dia / Dito por Mário Viegas






Ruy Belo (1933-1978)
"Morte ao meio-dia" in «Boca Bilingue» (1966).

Dito por Mário Viegas in «Humores», Disco 2, lado A (1980). Mário Viegas recita aqui a versão definitiva do poema, publicada no Vol. I da «Obra Poética de Ruy Belo» (1972), onde foi interpolada a estrofe iniciada por "O português paga calado cada prestação".

Música: Max Richter, "What had they done?" in «Waltz with Bashir. OST» (2008).

Em diversas línguas europeias a palavra "meio-dia" permite também designar o Sul geográfico. Tal foi o ponto de partida deste vídeo.

A frase de abertura é retirada de «A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer», da autoria do escritor sueco Stig Dagerman (1923-1954). Eis a frase no seu contexto: "E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade" (p. 23 da edição portuguesa de 1989).

O graffiti final é uma variação da frase do poeta austríaco Erich Fried (1921-1988), refugiado em Inglaterra após a anexação do seu país pelos nazis: "Aquele que deseja que o mundo permaneça tal como está, não quer de facto que ele permaneça". Na versão original não figura o enfático "at all" do graffiti: "Wer will, daß die Welt so bleibt, wie sie ist, der will nicht, dass sie bleibt."


POEMA:

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer


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