domingo, 25 de fevereiro de 2018

La Llorona por Susana Travassos - Teatro Solis - Uruguai (Abril 2016)







Susana Travassos

"Uma palavra cuja raiz é o mar. Uma voz cujo espaço é a fronteira. Parece que a carreira de Susana Travassos (Faro, 1982) foi mergulhada no ritmo marítimo da cidade de Vila Real de Santo António, vizinha da Espanha, onde morava até a adolescência e onde gerava sua vocação musical. Mas também do horizonte de Lisboa, onde ele continua seu treino e em 2008 seu primeiro álbum "Oi Elis" nasceu, um ir e vir entre latitudes, acentos e inspirações em diálogo com um dos maiores cantores brasileiros, Elis Regina. Como um passaporte feito de tributo, esse álbum levaria ao Brasil, onde passava várias temporadas colaborando com os músicos mais importantes do país até se instalar em São Paulo há um ano. Seu relacionamento com a música brasileira e a cultura já apresentaram várias frutas, como o álbum "Tejo-Tietê" em colaboração com Chico Saraiva e produzido por Paulo Bellinati, ou colaborações com Chico César e Zeca Baleiro. Como o mar, Susana puxa a distância, ela sai para poder retornar. É por isso que o ritmo de seu país natal emerge no novo álbum no qual "Asas de água" está funcionando. Com os braços largos que acolhem a diversidade que a caracteriza. Susana conquistou as etapas mais importantes de Portugal e Brasil. É sobre eles, na franqueza de sua voz, onde o mar tem todas as distâncias: sua música é uma arte de encontros."

(Texto escrito pelo jornalista e poeta Nieves Neira Roca)

in: http://www.teatrosolis.org.uy/uc_3010_1.html




domingo, 18 de fevereiro de 2018

António Lobo Antunes_Quatro Cartas de Amor_I

QUATRO CARTAS DE AMOR: PRIMEIRA

Como se pode estar cheio de paixão e não conseguir transmiti-la? E não sou má pessoa, palavra. Quer dizer: acho que não sou má pessoa. Depois hoje fiquei sem metade do corpo. A que sobra irá desaparecer por seu turno, é uma questão de tempo. Continuarei sozinho dentro de mim

Susa Monteiro
O meu ouvido esquerdo morreu hoje, dia 3 de Janeiro de 2018, por volta da uma hora da tarde. Esperava que durasse ainda mais algum tempo, uns anos, uns meses. Estava enganado: metade de mim desapareceu num estalar de dedos, para sempre. Não é trágico: é só horrível. E isso a gente aguenta. A otoesclerose é um problema hereditário: recebi-o da minha mãe, do meu avô, por aí fora. Dos Almeida Lima, porque sou Almeida Lima, de que tanto gosto. Não me lembro de ver o meu avô Almeida Lima sorrir. Quase não falava, também. Uma ocasião, em criança, perguntei ao meu pai se gostava dele. Respondeu
– Quem é que não gosta dele?
Morreu novo, tinha eu treze anos
(não, doze)
sou o filho mais velho de dois filhos mais velhos e foi a única vez que vi o meu pai chorar apesar dos óculos escuros, ele que nunca usava óculos escuros. A frase
– Quem é que não gostava dele?
nunca se apagou em mim. Era uma pessoa silenciosa e discreta, de grande beleza física. Demorei anos a perceber que sofria muito. 
A minha mãe, também surda, adorava-o. Passou 
pela vida sem nunca incomodar ninguém. 
Herdei-lhe a surdez: infelizmente não lhe herdei a bondade. Nunca o vi zangado, nunca o vi ralhar fosse com quem fosse. A minha mãe
– O teu pai gosta mais da minha família que da dele
e era verdade. Ele, que quase nunca saía, passava sempre o mês de Setembro em Nelas, na casa dos Almeida Lima, na varanda para a serra. Quando 
o nosso pai morreu o meu irmão Joãozinho, que é como continuo a tratá-lo dentro de mim, estava em Bragança, numa dessas comemorações do 
10 de Junho, e veio logo para Lisboa mas pela Beira Alta, claro, em homenagem ao pai, e quando chegou e nos abraçámos agradeci-lhe tê-lo feito, respondeu-me
(nunca esquecerei a sua cara)
– Os teus direitos de primogenitura
ele que tinha muito mais qualidades de primogénito do que eu, que vivo num mundo que nem sei bem 
qual é. Adiante. Anda-me lá com isto, Almeida Lima. 
Por volta dos quinze anos, a minha mãe começou 
a ensurdecer. Os meus avós levaram-na ao médico. Contava ela que lhe disseram
– Não caia na asneira de ter filhos para não lhes transmitir esta doença.
Perguntei
– O que fez a mãe?
Respondeu-me
– Chorei uma semana e depois arranjei seis rapazes.
Acrescentou
– Desafio qualquer mulher 
no mundo a ter filhos tão bonitos 
e tão inteligentes como os meus
num movimento orgulhoso 
e tranquilo. Apesar de fisicamente frágil era dura como aço. O meu pai, quase no fim da vida
– A tua mãe é uma pessoa extraordinária
sempre sem uma queixa, uma pieguice. Quando o Pedro morreu fomos os cinco a casa dela. Disse apenas duas frases. A primeira foi
– Tenham misericórdia de mim
e a segunda
– Uma mãe não tem o direito 
de estar viva com um filho morto.
E foi logo ter com ele, resoluta, sem uma queixa, sem uma lágrima, sem um sobressalto sequer. Pegámos no seu caixão na igreja e levámo-
-lo aos ombros. Fui uma besta de incompreensão e violência para com ela quando lhe disse anos antes
– Quis fazer de nós uns aleijados, não foi?
E ficou calada a olhar-me. Assim, que tempos 
a olhar-me em silêncio. Eu era o grande problema dela: indisciplinado, desobediente, mau aluno, cercado pelo mimo todo da família. A minha mãe, entrevistada num livro espanhol, acerca de mim:
– Foi sempre recebido por todos como um deus na terra.
Era verdade: tratavam-me tão bem. E eu insaciável, esquisito, parvo, com uma ferida enorme cá dentro que não entendia, fechado num mundo de angústia, contraditório, violento, a tremer de um amor que me consumia e não era capaz de comunicar a ninguém. Depois melhorei ao começar a escrever. Como se pode estar cheio de paixão e não conseguir transmiti-la? 
E não sou má pessoa, palavra. Quer dizer: acho que não sou má pessoa. Depois hoje fiquei sem metade 
do corpo. A que sobra irá desaparecer por seu turno, 
é uma questão de tempo. Continuarei sozinho dentro de mim. Como o meu avô. Como o meu avô mas sem a sua bondade, a sorrir vagamente num canto da varanda para a serra, fechado na redoma de silêncio que me deixou. Lembro-me do seu sorriso. Herdei-o: é meu agora. Pode ser-se feliz assim. Pode ser-se feliz assim? Que pena não conseguir perguntar-lhe. Como se sentem os senhores como você, porque foi sempre um senhor, e os palermas como eu nunca lhe chegarão aos calcanhares? Queria tanto vê-lo agora na vindima, de casaco de linho entre os cachos de vinho branco. Por mais moucos que estejamos os dois e por muito pouco que falássemos havíamos, palavra de honra, de conversar todo o tempo: une-nos 
a menina dos olhos da sua filha, que o avô plantou com paixão neste mundo enquanto eu sou apenas 
o produto mais rebelde dela. Mas por acaso vi-lhe o rosto quando foi da história do meu cancro. Olhe, não se aborreça comigo mas nunca dei por tanto amor num rosto de mulher. Agora multiplique isto por seis e junte-os ao pai deles. 
A primeira vez, depois da partida do meu pai, que entrei na sua casa, disse
– Isto sem o pai fica vazio.
Ele que estava sempre fechado no escritório. A mãe respondeu, de mansinho
– É que o teu pai tinha uma presença muito forte.
E agora, avô, diga-me lá como se vai aguentar com tantos rivais ao mesmo tempo?
Lembra-se do verde dos olhos dela? Lembra-se que até os seus pés eram perfeitos? Mãe, mãe, não nos deixe nunca. Posso não mostrar porém amo-a tanto. Desculpe lá a mariquice eu que uma ou duas vezes
(talvez três)
a sentei ao meu colo. Não imagina como me senti feliz.
(Crónica publicada na VISÃO 1301, de 8 de fevereiro de 2018)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Naufrágio_ Amália




Naufrágio

Cecília Meireles

 Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.



Cecília Meireles (Poetisa brasileira, 1901-1964)

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Silvia Plath_ a Poeta

POESIA

Sylvia Plath: há 55 anos morria o corpo e nascia o mito


Na noite mais fria de 1963, a poetisa Sylvia Plath suicidava-se. Tinha 30 anos e em breve renasceria como um dos mitos da poesia do século XX.
Sylvia Plath no início da idade adulta quando ainda vivia na América
Autor
  • Joana Emídio Marques
A noite de 11 de fevereiro de 1963, diz-se, foi a mais fria daquele ano. A poetisa americana Sylvia Plath vivia na casa que tinha pertencido a Yeats, em Primrose Hill, Londres. Deitou os filhos no quarto do 1º andar, esperou que eles adormecem, abriu-lhes a janela do quarto, calafetou as portas, deixou pão com manteiga e leite na mesa de cabeceira desceu para a cozinha, enfiou a cabeça no forno do fogão e abriu o gás.
O suicídio fez dela, que era apenas uma jovem de 30 anos, um mito. Não entre os académicos ou os intelectuais, mas entre as feministas inglesas e americanas do final dos anos 60. A sua poesia tornou-se secundária  ao que foi a sua vida conjugal com o famoso poeta Ted Hughes, as traições, os maus tratos, a solidão, os desencontros fizeram dela a bandeira perfeita da luta feminista: a bela, jovem e promissora poetisa mata-se devido à infidelidade conjugal. E assim, Sylvia Plath começou a ser lida não como a talentosa que era — e é — mas como uma vítima. No filme “Annie Hall”, Woody Allen resume a história de forma lapidar:
“Uma boa poetisa cujo trágico suicídio foi interpretado como ‘romântico’ por uma mentalidade adolescente.”
Sylvia Plath nasceu em 1932 e aos 9 anos estreava-se a publicar o primeiro poema num jornal de Boston
Esta romantização do suicídio e das doenças mentais, uma das perversidades recorrentes nas artes e na literatura, teve muito pasto na vida de Sylvia e depois na dos que a rodeavam, desde Ted aos dois filhos do casal. À medida que a fama de Ted Hughes crescia, crescia também a Sylvia e continuava a ler-se a sua obra e a sua morte apenas como uma reacção à infidelidade masculina. Ou, se quisermos: morreu por um amor não correspondido e vilipendiado, o que a torna igual a qualquer heroína da Danielle Steel.
Sendo indiscutivelmente uma grande poetisa, será que se não tivesse morrido teria tido a mesma consagração? Até que ponto se tornou consagrada pelas razões erradas? Leram-na e lêem-na como um acto de justiça e de afirmação feminista ou como autora? Ou melhor: lêem-na por aquilo que foi ou por aquilo que a fizeram representar? Será que, inconscientemente, Sylvia deu o golpe de marketing perfeito?
Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well. ”
(S. Plath, Lady Lazarus)

Colher papoilas na melancolia

Antes de ser um ícone dos movimentos feministas dos anos 60/70, antes de ser um mito da poesia anglo-saxónica do século XX, de ser um filme de Hollywood, de ser até o nome de uma cor de batôn, de ter o rosto pendurado em shopping bags de algodão e T-shirts, antes mesmo de ser protagonista de uma saga familiar trágica de contornos shakespearianos, foi apenas uma miúda loira que nasceu em 1932 em Boston, EUA, com um talento precoce para a palavra e um temperamento melancólico.
Os gregos chamavam à melancolia a bílis negra e não é crível que a ciência já tenha descoberto o gene que a determina, se é hereditária, contagiosa. Sabe-se que pode ser mortal. Sabe-se que esta espécie de perda fatal, esta falta sem objecto definido que habita tantos de nós, está na génese da arte, do conhecimento, mas também do crime, dos impérios. Uns transformam-na em obra, outros sucumbem-lhe. A melancolia é um sentimento antagónico ao colectivo e é ela que, tantas vezes, nos permite resistir ao apelo frenético das cidades reais e virtuais, que nos faz buscar a solidão essencial à leitura, ao estudo, à imaginação.
“Ariel”, obra que reúne os melhores poemas de Plath, está editada na Relógio d’Água
No entanto, a melancolia não é sinónimo de depressão, nem sequer de tristeza, ainda que o nosso tempo tenda a colocar tudo dentro do mesmo saco  Apenas nem todos tem o dom de transformar a dor, a angústia, até a demência (como Hölderlin, Robert Walser, Ângelo de Lima) em grande arte.
I am terrified by this dark thing
That sleeps in me;
All day I feel its soft, feathery turnings, its malignity. ”
(S.Plath, Elm)
Sylvia teve esse dom. Não era apenas uma mulher melancólica, em busca da beleza do que teria podido ser, em busca de um “Eu” onde habitassem intactas todas as possibilidades. Não era certamente uma flaneur, estava mais próxima dos misticismos exaltantes (como a bibliomancia e a astrologia) que da contemplação átona. Com episódios depressivos desde a adolescência, Sylvia começou por fazer da poesia um acto de resistência contra essa ausência precoce: o pai, morto devido à diabetes quando ela tinha 9 anos. Aos 11, ela publica o primeiro poema. Aos 20, faz a primeira tentativa de suicídio e tem o primeiro internamento psiquiátrico.
 Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me”
(S. Plath, Lady Lazarus)
Em 1955 foi estudar para Inglaterra onde conheceu e casou com o também poeta inglês Ted Hughes, uma relação conturbada que espelhava a sua ambivalência mais próxima do trágico onde as forças contraditórias são insuperáveis. Não há síntese dramática, vínculo afectivo ou moral que detenha o que o destino preparou para nós. Terá Sylvia, eventualmente, tentado encontrar em Hughes o amante e a família que lhe permitiram organizar uma paisagem para a sua existência no mundo tal como a poesia?
I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(S.Plath, Mad Girl’s Love Song)

Sylvia e Ted, a dança na escuridão

Sylvia e Ted Hughes conheceram-se numa festa na Universidade de Cambridge.
Na tarde  em que Sylvia Plath abandonou definitivamente a casa de campo, em Devon, e o marido, o poeta inglês Ted Hughes, ficou alojada no exíguo apartamento de Helder Macedo, no número 34 da Fitzjohn’s Avenue, em Londres, e  “trazia um dos dedos da mão enrolado em gaze suja e uma ferida gangrenada que quase lhe valeu perder o dedo. Estávamos em outubro de 1962, ela tinha decidido deixar o Ted e veio sozinha para Londres procurar um apartamento onde se pudesse alojar com os dois filhos. Ficou em nossa casa durante umas semanas. Aparentemente, estava recuperada da depressão e foi até comprar roupas novas. Estava mais bonita e preparava-se para publicar um livro, o romance  ‘A Campânula de Vidro’  assinado com o pseudónimo de Victoria Lukas e que chegou às livrarias apenas um mês antes da sua morte.  Só em 1967 é que a obra foi reeditada com o seu nome verdadeiro” lembra Helder Macedo que, tendo sido amigo íntimo do casal, sempre se recusou falar publicamente sobre eles por não suportar a forma “leviana” como os media ingleses exploraram esta história trágica e depois como a obra de Sylvia foi “reduzida” pelos grupos de feministas que fizeram dela “uma pobre vítima do malvado Ted Hughes”.
Apesar de tudo o que aconteceu neste período, o escritor português considera que esses foram os meses de “apogeu criativo” de Sylvia e que “datam daí os seus melhores poemas”. Entre eles estão o famoso e auto-biográfico “Lady Lazarus” e o hermético “Papoilas em Outubro”, que foi dedicado a Helder e Suzette Macedo e que a poetisa deixou sobre a mesa no dia em que deixou o exíguo apartamento na Fitzjohn’s Avenue e se mudou para a casa de Primrose Hill.
O romance auto-biográfico publicado um mês antes de se ter suicidado (Relógio d’Água)
O escritor e português e a mulher conheceram Sylvia e Ted em 1961, na casa de um escritor sul africano radicado em Londres, Silvester Stein, onde conheceram também a futura prémio Nobel da literatura Doris Lessing. Em 1962, Suzette apresentou Sylvia a Doris: quando conheceu a americana, Lessing terá achado “insuportável o seu desespero incandescente”. Apesar disso, ficaram amigas e num destes acasos fatais acabaram por conhecer mais tarde o poeta David Wevill e a sua bela mulher Assia. E assim as parcas iam entrelaçando as malhas do destino num desenho fatal. “Quando Sylvia conheceu Assia ficou, como todos nós, fascinada e perturbada pela sua beleza e um dia confessou-me que viu nela o seu duplo negativo.” Apesar de Sylvia e Ted terem pouco depois partido para uma casa de campo em Devon, no Sul de Inglaterra, ele e Assia tornar-se-iam amantes.
 “Tenho um sonho que só meu. O meu único sonho. Um sonho de sonhos. Nesse sonho há um grande lago translúcido que se espraia em todas as direcções, demasiado vasto para que lhe veja as margens, se é que tem margens, e eu estou suspensa sobre as águas (…) no fundo do lago, tão fundo que eu apenas antevejo o movimento e o arfar das massas sombrias, estão os dragões de carne e osso (…) é neste lago que desaguam os pensamentos de toda a gente, regatos e sarjetas convergindo para um imenso reservatório comum”.
(S.Plath, conto da colectânea “Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos”, Relógio D’ Água)
Para lá dos contos e da poesia, Plath escrevia diversas formas de textos diarísticos, que podiam ser exercícios de intimidade e de auto-flagelação, tentativas de auto-mobilização para resolver problemas, descrições de pessoas ou acontecimentos. “Alguns destes textos”, escreveu Hughes, “revelam mais claramente ainda que os seus melhores contos, a que ponto a pura presença objetiva das coisas e dos acontecimentos lhe paralisava a fantasia e a invenção”.
Helder Macedo lembra-se de a ver pintar objetos, restaurar móveis antigos, embora não esconda que Sylvia era por vezes “excessiva e superficial” e que ela e Ted tinham ambos um lado “profundamente sombrio que se inter-potenciava”. O escritor português assume ter um maior fascínio pela rival de Sylvia: Assia Wevill (sobre ela escreveu um ensaio que está incluído no volume 30 Leituras, da editorial Presença): “Era uma mulher que transportava no rosto a história do povo judeu. Tinha uma beleza, um lastro incríveis”.
A descoberta da relação do marido com Assia ditaria a ruptura e a separação definitiva entre ele e Sylvia.
Sylvia com os filhos, Frieda e Nicholas, em 1962, já depois de se ter separado do poeta inglês
“Sylvia e as crianças tinham passado o Natal de 1962 em nossa casa e eu estava a projetar editar em Inglaterra uma coletânea de poesia portuguesa que seria traduzida para inglês por Plath, Huhes e Wevill. Não deixa de ser curioso o fascínio que Sylvia e Ted desde logo tiveram por pelo poeta Mário de Sá-Carneiro. Hughes traduziu para inglês alguns dos últimos poemas de Sá-Carneiro, nomeadamente ‘Caranguejola’ [em que o poeta se imagina no sossego de uma cama de hospital, numa espécie de morte em vida]. Já Plath interessou-se sobretudo pelas imagens do ‘duplo’ exploradas no romance ‘Confissão de Lúcio’. O suicídio de Sylvia teria, portanto, sido também um assassinato de Assia, enquanto o seu duplo? Tragicamente (e grotescamente) o suicídio de Assia iria também ser uma duplicação exacerbada do suicídio de Sylvia.”
Em 1969, a publicitária judia acabaria também por cometer suicídio através da inalação de gás do fogão, tal como fizera Sylvia. Porém, Assia matou também Shura, a filha dela e de Ted, que tinha apenas 4 anos. O poeta teria, entretanto, arranjado uma nova paixão e Assia vingou-se como uma Medeia.
Esta manhã nem mesmo as nuvens entre o sol podem pôr estas saias.
Nem a mulher na ambulância
De coração vermelho a florescer assombrosamente através do
casaco
Uma oferenda, uma oferenda de amor
Jamais pedida
Nenhum céu
Esmaiado e em chamas
Pondo a trabalhar o seu monóxido de carbono, nenhuns olhos
Estáticos, em sentido sob chapéus de coco.
Ó meu Deus, o que sou eu
Possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas.”
(“Papoilas em outubro”,  poema que Sylvia Plath dedicou a Helder e Suzette)

A morte como redenção

Segundo os manuais de psicologia, o suicídio tem, a mais das vezes, um elemento de afirmação narcísica. Quem não dá importância a si próprio raras vezes se suicida, deixa-se morrer passivamente. Em parte também por isso o suicídio dos mais velhos (os que estão mais próximos da morte) é mais raro do que o suicídio de jovens.
Assia Wevill e a filha que teve com Ted Hughes, Shura. Ambas morreriam em 1969.
A afirmação narcísica inerente ao suicídio pode também reflectir agressividade contra os outros: “Os que não me entendem e agora ficam a sofrer com a minha ausência”. Assim, paradoxalmente, o suicídio muitas vezes é uma afirmação de vida. Isso é patente no poeta Mário de Sá-Carneiro quando diz: “Morro à míngua de excesso”. E pede depois que participem na sua morte batendo em latas num estardalhaço celebratório e indo de burro. Por humildade? Não. Por auto-desprezo? Em parte. Mas talvez também como Cristo entrando em Jerusalém: redentoramente.
“Sylvia Plath desde muito jovem se tornou [tal como Sá-Carneiro] numa espécie de suicida profissional. Como se fosse uma arte em que era exímia, como diz num poema. No seu suicídio há tanto de desespero pela incompreensão dos outros quanto de afirmação de si própria. Matou-se quando estava a sair da grande crise motivada pela separação de Ted Hughes. Quando ia recomeçar a viver. Creio que no suicídio há também um elemento de desdobramento de personalidade. O suicida é o vivo que se vê morto. É um duplo de si próprio — e aqui entramos no território freudiano do ‘uncanny’, a inquietante estranheza. É interessante notar que, tanto em Sá-Carneiro quanto em Plath, os temas do duplo e do suicida coexistem”, afirma Helder Macedo.
Apesar das polémicas, Ted Hughes tornou-se poeta laureado em 1984 e morreu em 1998. Depois da morte de Sylvia, Ted afastou-se e só anos mais tarde Helder Macedo e Suzette voltariam a reencontrar Frieda, a filha mais velha do casal e hoje responsável do espólio dos pais, ela que tem dedicado os últimos anos a lutar para que Sylvia seja descoberta como poetisa e não como ícone feminista. No dia 16 de março de 2009, Nicholas Hughes, filho mais novo de Ted e Sylvia, biólogo, que parecia ter encontrado na vida dos peixes um lugar para si longe da sua saga familiar, enforcou-se na sua casa no Alasca. Tinha 47 anos e estava a viver uma depressão profunda. O seu nascimento tinha sido transformado pela poetisa americana num triunfo da beleza sobre a dor, da vida sobre a morte.
Ted Hughes e os filhos alguns anos depois da morte de Sylvia Plath
55 anos depois, perguntamos a Helder Macedo o que faz de Sylvia Plath, uma grande poetisa que merece ser lida e não mitificada: “Como todos os bons poetas, conseguir dar expressão às percepções que mais doem. Dando portanto uma voz pessoal e única ao que é potencialmente de todos. Tornando o que lhe é específico em partilhável. Todos nós, mais ou menos, vivemos, sofremos, amamos, odiamos etc. O poeta transforma toda essa banalidade numa linguagem que, quanto mais sua for, mais se torna dos outros. O poeta portanto falsifica a sua ‘verdade’ na artificialidade da linguagem para a poder tornar verdadeira. Não há poesia sem os outros, mesmo que só imaginados ou implícitos. A Sylvia tornou-se numa extraordinária poetisa quando se falsificou na persona da sua verdade.”
in: jornal "Observador"